Sobre Bananas e Macacos: a irracionalidade do racismo

 

 

O gesto espontâneo de Daniel Alves de comer uma banana atirada em sua direção no jogo contra o Villa Real pelo campeonato espanhol teve forte repercussão. Neymar, seu colega de time, em um gesto de apoio publicou uma foto comendo uma banana e inaugurou a hashtag #somostodosmacacos. Em seguida, milhares de internautas seguiram a onda. Em meio a toda essa repercussão, surge o slogan “somos todos macacos” estampado na grife de Luciano Hulke, apresentador da rede globo. Como era de se esperar, muitos negros não gostaram do slogan da campanha; foi possível encontrar nas redes sociais inúmeras formas de repúdio à equiparação do negro ao macaco que batiam na tecla de que a racionalidade é o fator distintivo da humanidade e é partilhada por brancos e negros. Márcio Chagas e o ator Érico Brás, no programa Corujão do Esporte, seguiram essa posição afirmando que admiravam o gesto de Daniel Alves pela espontaneidade, mas não podiam aprovar a equiparação do negro a macacos.

Aqui temos uma questão muito cara aos filósofos: o que diferencia o homem dos demais animais? A resposta a essa questão é um dos poucos pontos que pôs os filósofos em acordo: a racionalidade é o fator distintivo entre homens e animais. Mas, me pergunto: há coisa mais irracional do que a ofensa racista? O que a cor da pele faria de alguém melhor ou pior? Será que a questão da cor da pele como critério de semelhança entre homens e primatas não seria tão relevante quanto o tamanho dos cabelos, ou a presença de barba?

Alguém lembraria que, por vezes, alguns seres humanos brancos com cabelos e barba longa são tidos como seres de aparência ruim ou ‘pouco apresentáveis’ tanto quanto negros, pardos, índios e mulheres. Basta atentarmos aos critérios de ‘boa aparência’ em uma seleção de emprego. No entanto, desde Platão e Aristóteles há o consenso de que a humanidade de alguém não pode ser medida por características relacionadas à aparência: a essência do homem é a racionalidade. Isso é o que há de universal e, por sinal, de distintivo nos homens. Assim, racionalmente falando, somos iguais porque somos todos igualmente distintos do restante dos animais.

Contrasta com isso o fato de que a questão do racismo é uma forma de preconceito cujo tema é a diferença; assim como o bullying, o racismo é um tipo particular de discriminação do diferente. Nessa linha, Érico Brás afirmou: “enquanto não aprendermos a admirar as diferenças, não vai acabar o racismo”. Eu diria que seria demasiado utópico chegar ao ponto em que todos admirassem os diferentes; pelo menos no registro que mais importa para a discriminação racial: o registro do inconsciente.

Tentemos entender como se dá a discriminação racial. Racionalmente falando, não há motivo para ofensa nos atos racistas. Pois, ter uma cor de pele não significa ser melhor ou pior; mais ou menos humano. Mas, na realidade o racismo existe somente na medida em que alguns se arrogam uma vantagem substancial sobre outros, quando, na verdade, não têm essa vantagem e esses outros, em contrapartida, se ressentem como piores por não possuírem essa característica, quando, na verdade não são piores.

Algo parecido ocorre quando alguém procura ofender e ridicularizar o outro atribuindo-lhe uma caracterísitca que essa pessoa possui: gordo ou magro, baixo ou alto. Exemplar é a frase de Márcio Chagas da Silva: “Eu nunca vou poder dizer que não sou preto”. Se tentamos entender o fenômeno, vemos que – repito –, racionalmente, não há nenhuma vantagem ou desvantagem. Agora, alguma desvantagem pode ser observada em aspectos sócio-culturais que, acidentalmente, estão associadas à cor da pele. Esses aspectos fazem parte da nossa história que hoje em dia tentamos reparar com uma ou outra medida governamental.

Lembremos um pouco dessa história que torna possível associar, irracionalmente, o negro aos nossos parentes primatas e a uma função menor na sociedade. Essa história nos leva ao passado escravista nas Américas e ao período colonial. Eu adicionaria que, para entender o fenômeno recente de racismo, é preciso adicionar que antes da escravidão dos negros, a escravidão foi tradicionalmente imposta a inimigos derrotados ou a devedores. De modo que o escravo, o derrotado, negro, esteve por muito tempo submetido a uma posição de servidão. A parte irracional do homem seria o que permitiria, portanto, essa associação.

No entanto, sabemos que hoje as coisas são diferentes: o negro pode ocupar uma posição de chefia. Pode desfrutar de lazer tanto quanto os brancos e competir com estes em igualdade de direitos; no esporte ou no mercado de trabalho. Aliás, emblemáticas foram as quatro medalhas de ouro de Jesse Owens na olimpíada sediada em Berlim em 1936: a Alemanha nazista presenciou o triunfo de um negro sobre os arianos. Assim, podemos compreender por que muitos brancos se sentem ameaçados e recorram ao passado escravista dos negros para tentar ofendê-los. É como se precisassem se defender a todo custo de uma terrível ameaça.

Será que temem que se efetive o destino da dialética do senhor e do escravo? Isto é, seria como se houvesse um temor por parte de alguns brancos de vir a ocupar o lugar de escravos para expiar o passado cruel de seus antepassados?

Independentemente do que realmente temem os brancos que ofendem negros equiparando-os a macacos, o fato é que a ofensa racista, em geral, parece estar intimamente ligada ao que Freud chamaria de “complexo de inferioridade” de cada um dos envolvidos. Seja dos que se ofendem, seja dos que ofendem. Ilustrativo disso são as situações deflagradoras que presenciamos recentemente. O árbitro de futebol, Márcio Chagas da Silva, relatou ter sido ofendido assim que expulsou um jogador. Este, irritado e sentindo-se prejudicado pelo árbitro, reagiu com o xingamento racista e ofensivo. Outra vez em que sofreu com o racismo – situação que ganhou bastante espaço no noticiário esportivo, o time do Passo Fundo e sua torcida o ofenderam após uma derrota que quiseram atribuir à arbitragem de Márcio Chagas, pois, reconhecer a incompetência do seu próprio time não é fácil.

Daniel Alves recebeu a banana do torcedor do Villa Real quando estava prestes a bater um escanteio. Tratava-se nada menos do que um ataque do poderoso time do Barcelona; diga-se de passagem que todos sabem da eficácia do cruzamento do lateral da seleção brasileira. Todo torcedor que vibra com seu time é capaz de experimentar uma imensa tensão quando o time adversário bate um escanteio; o que dizer de um ataque do Barcelona?

Sentir-se ameaçado pelo semelhante incomoda. É como se ele fosse um obstáculo. O semelhante é um diferente que pode nos vencer; tomar o que é nosso. Anular nossas qualidades, nos constranger frente aos demais.

O caso do dono do Los Angeles Clippers também nos mostra uma situação desse tipo: ele diz à sua namorada negra que ela podia até fazer sexo com negros como Magic Johnson – o imortal jogador do Los Angeles Lakers, mas não podia aparecer em público e postar fotos em redes sociais com ele. Não tenho certeza se há em Los Angeles uma rivalidade tal qual a de Grêmio e Inter por aqui, mas imagino que seja semelhante. Mas a rivalidade nesse caso não se refere apenas aos times: Magic Johnson jogou basquete de modo espetacular; equiparado a ele talvez apenas Michael Jordan. Há outro fato que talvez preocupasse Donald Sterling e que, aliás, pudemos conferir no texto de sua mensagem à sua namorada: a capacidade de Magic Johnson satisfazer sua namorada mais do que ele mesmo, que, só pôde sentir-se mais avantajado apelando para o fator cor da pele.

Como antídoto para os atos racistas, aparecem propostas de campanhas que reforcem as punições; são campanhas em prol da igualdade. A meta parece fazer sentido: indubitavelmente, se todos fossem iguais e assim se tratassem, não haveria racismo. O problema dessa campanha é que ela não leva em conta o fator irracional do homem; uma campanha desse tipo peca ao ignorar que somos diferentes e que as ofensas racistas surgem justamente por uma intolerância à diferença. Uma diferença ameaçadora. Temos uma dificuldade tremenda em lidar com o outro que é diferente de nós e que conosco convive, trabalha e compete.

Não é de se estranhar que as situações de racismo que apareceram recentemente na mídia estejam no contexto esportivo, pois o esporte é um lugar privilegiado para a competição. Situações semelhantes acontecem diariamente em situações de trabalho, embora não venham a ser tão amplamente noticiadas como a situação da banana e da campanha “somos todos macacos”.

Talvez, o melhor antídoto não seja uma campanha pela igualdade. Porque não somos iguais. Somos muito diferentes. Não só os negros de um lado e os brancos de outro; os brancos, os negros, os judeus, os chineses, os índios não só são diferentes, mas cada um desses, por mais que tenham a mesma cor de pele, são muito diferentes uns dos outros. Eu aconselharia uma campanha para a tolerância da diferença; se for pela igualdade, que seja porque todos igualmente tememos a diferença e, por vezes, nos atrapalhamos ao lidar com esse temor.