Freud apontou para consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos. No seu seminal texto do começo do século XX, convidou a comunidade psicanalítica a avaliar seus insights, como quem estava a se perguntar: isso é coisa da minha cabeça ou as diferenças anatômicas entre os sexos provocam uma série de consequências psíquicas muito significativas na vida de cada um e na sociedade como um todo?
Se referia ele ao desenho que os genitais de fêmeas e machos humanos possuem e o quanto essa diferença tem influência no comportamento humano. Podemos pensar, a partir daí, que os gêneros, sejam os tradicionais cis heteronormativos: homem e mulher, sejam os contemporâneos -- que possuem toda uma complexa constelação de nomeações com as quais ainda estamos aprendendo -- são consequências e acomodações psíquicas desses desenhos anatômicos e pacotes hormonais.
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Recentemente, em um grupo de whatsapp do qual faço parte -- onde falamos sobre as condições das ondas em Torres e arredores, discutimos política e notícias do cotidiano -- surgiu uma certa sequência de mensagens muito interessante. É um grupo majoritariamente masculino com as características predominantes em nossa cultura em que foi possível exercitar um pouco o que poderíamos chamar de divulgação do método psicanalítico. Essa sequência foi tão interessante para elucidar como o inconsciente se manifesta a partir dessas “consequências psíquicas das diferenças anatômicas”, constatadas por Freud, que eu resolvi pedir permissão para o pessoal do grupo e utilizá-las para fazer uma abordagem preliminar desse fenômeno cultural de gênero que é o “Manual Red Pill”.
A sequência de mensagens que eu acabei escolhendo se inicia com o relato de um pesadelo, o qual recebe interações de diversos membros do grupo com risadas e outras reações e tem desfecho na postagem de uma foto de uma colega de uma pintura recente que ela havia feito. Essa pintura conversa bastante com o pesadelo relatado e com o que eu gostaria de chamar de mal-estar humano diante da diferença sexual.
Vamos lá, vou situar um pouco a sequência de mensagens. Aquele que tem o posto de “presidente” do grupo relata o seu pesadelo e eu, como representante do “departamento de coisas do inconsciente” (essas nomenclaturas fazem parte da informal institucionalização do grupo) acabo fazendo algumas intervenções no sentido de aproximar o pesadelo desse tema que é a angústia de castração. Começamos o dia com o presidente revelando um pesadelo que, para sua curiosidade, guardava relações com as pautas discutidas no grupo ao longo de um dia sem ondas, que é quando todos se tornam ativos no grupo.
Essa noite que acho que fiquei impressionado com o papo de ontem sobre as origens do futebol. Sonhei que deu uma briga de trânsito: um cara deu boxe na mulher ( briga dos vizinho). Daí foi linchado pela massa. Cortaram a cabeça e começaram a chutar, meio que num espetáculo popular na esquina democrática ( debates políticos). Que loucura! Acordei suando.
Diante desse relato e, tendo em mente o evento dos red pill, movimento que eu ignorava até a véspera, quando a pôlemica começou a ser denunciada por algumas amigas que começaram a me colocar a par do ocorrido. Resolvi fazer uma intervenção no sentido de mobilizar o material do pesadelo e aproximá-lo de minha hipótese sobre o sucesso do fenômeno entre o público masculino:
[09:09, 28/02/2023] Alexandre Teles: O resto diurno é o material de sonhos e pesadelos
[09:10, 28/02/2023] Alexandre Teles: Esse medo de ter a cabeça arrancada é o que mantém muito homem solteiro
Disse isso sabendo que o nosso presidente parece evitar um pouco a vida de um relacionamento sério, monogâmico, e que é um fato com o qual volta e meia brincamos. Em sua casa não há porta no banheiro, por exemplo, coisa que costumo brincar que é um modo dele se manter solteiro. O resto diurno foi o que ele próprio já sinalizou em sua descrição do quando utilizou parênteses. Na véspera, enquanto falávamos sobre a popularidade ou elitização de alguns esportes, surge o tema da origem entre os nobres de alguns esportes, como o tennis e o futebol. Até que um membro do grupo afirmou que o futebol era jogado com a cabeça decepada de um inimigo.
Se isso confere com história do esporte ou não, não importa, mas passou a fazer parte da cena sonhada pelo nosso colega. O fato é que ele, no mesmo dia, escutou um casal de vizinhos brigando e provavelmente se angustiou com essa cena. Isso se transformou em uma cena de briga de trânsito que culmina em violência contra mulher que acaba em linchamento do agressor. Há aí a evidência que nosso sonhante condena agressões contra mulheres, ou mesmo que a reprovação pública desse tipo de agressão está presente em sua estrutura psíquica.
Outro membro do grupo se interessa pela questão do resto diurno e sua influência para os fenômenos oníricos e responde a minha afirmação sobre os sonhos
“Sempre falei isso para um amigo. Ele olhava Vikings antes de dormir e passava tendo pesadelos”
O sonhante, a partir disso afirma:
“bah eu sonhava com a Laguerta e sua namorada... Após ela ser abandonada pelo Hagnar em detrimento daquela princesa esquisita. Laguerta, mãe de Bjorn Ironschield, filho de Hangar, que viera a ser morto pelo sem ossos, filho rejeitado pelo pai: o mais perigoso deles.
”Ele manifesta ali uma certa surpresa pelo fato de Hagnar ter abandonado Lagerta, uma heroína e tanto no universo masculino. Ao que pontuo:
[09:18, 28/02/2023] Alexandre Teles: A Laguerta era perigosa
[09:19, 28/02/2023] Alexandre Teles: Talvez faça sentido pular o barco. É importante manter a cabeça no pescoço...
Outro colega que estava acompanhando a conversa dá gargalhadas, o que demonstra que a temática da angústia frente ao “perigo de perder a cabeça para as mulheres” , ou ser cortado por elas é compartilhado e o sonhante complementa:
“Bah, aquele cara que dava nela. Tomou a faca no olho!”
Isso complementa a ideia do perigo que uma mulher forte pode representar para um homem. E então o colega que havia dado uma gargalhada antes, compartilha a notícia de um jovem que havia sido assassinado, com facadas, pela namorada enquanto dormia.
Eu então faço referência a um momento do ensino de Lacan em que ele brinca fazendo de conta que está diante de uma louva-a-deus gigante e fala dos seus motivos para não estar tranquilo na oportunidade, já que o louva-a-deus é uma espécie em que a fêmea se alimenta da cabeça do macho após o coito.Foi então que ilustrei a questão com a polêmica recente das redes e perguntei se estavam por dentro:
[09:51, 28/02/2023] Alexandre Teles: Mas vcs viram a polêmica desse tal red pill?
[09:51, 28/02/2023] Alexandre Teles: Diz respeito a esse medo. O medo de ter uma parte do corpo cortada. A tal angústia de castração.
[09:52, 28/02/2023] Alexandre Teles: O cara desenvolveu toda uma técnica e inclusive trabalhou com isso, difundindo uma estratégia de lidar com o medo que as mulheres provocam nos homens.
A partir disso o grupo segue para outras pautas de surf e política até que uma colega, umas das poucas surfistas mulheres presentes no grupo, se apropria da conversa e diz:
“Curioso ter surgido este assunto aqui...Compartilho o resultado do último quadrinho que pintei...a representação da deusa hindu Kali”
Ao que complemento, “a angústia de castração se manifesta de diferentes maneiras, como diria o velho inventor da psicanálise”.
A deusa Kali, para essa colega, tem outra conotação. Distinta e complementar ao que a do medo que os colegas homens possuem. E isso é interessantíssimo para pensarmos as diferentes manifestações da angústia de castração e como a cultura é rica nessas representações. Se por um lado uma mulher pode representar para um homem uma restrição em suas liberdades fálicas, daí as diferentes imagens e temores de ter o seu genital castrado ou alguma parte significativa de seu corpo. Por outro lado, os homens podem ser representados para mulheres como demônios opressores a serem extirpados, cujo desfecho é libertador, tal como a imagem da deusa Kali ilustra muito bem.
Minha ideia inicial com a intervenção a partir do pesadelo do colega era de brincar um pouco com o grupo majoritariamente masculino e mobilizar esse medo que temos, bem como ilustrar como a técnica psicanalítica mobiliza o inconsciente. O relato de um pesadelo é um material importante com o qual trabalhamos. Para minha surpresa, o grupo mostrou uma sequência de associações interessantíssimas culminando na imagem de Kali com a língua ensanguentada, uma faca na mão e uma cabeça masculina em uma de suas mãos. Imagem pintada por uma mulher. O grupo segue nessas pauta, entre outras pautas do cotidiano.
Fazendo circular esse texto entre o grupo e um público maior, creio que em breve teremos uma segunda parte dessa conversa.